Bouai

Esse texto vai para meu irmão, o Henrique. Ele tem dois anos e meio, e há pouco mais de um ano usa implante coclear, o que tem permitido a ele ouvir.


No quarto do lado ao meu dorme um anjinho. Esse anjinho dorme ali há uns dois anos. Chegou à minha casa muito pequenino. Sua pressa em chegar era tanta, que ele veio antes de estar pronto. E, por não estar pronto, teve que vencer muita coisa antes de chegar lá em casa.

Mas enfim ele veio. Um leito branco, como nuvens em dia de céu claro, o esperava. Esse anjinho chegou para unir o que estava disperso, trazer alegria há um lugar de silêncio. Ele era tão frágil, tão delicado, que eu tinha muito medo que fosse embora. No começo, esse anjinho chorava cada vez que entrava na água. Hoje, chora pra ficar se banhando mais tempo.

Ficava hipnotizado com beijinhos na orelha. Adorava (e ainda adora) a luz. Mas o anjinho não acordava com barulhos, não se voltava para as vozes. Parecia que o anjo não conseguia ouvir. As pessoas que trouxeram o anjo pra cá, ficaram muito preocupadas com isso. Levaram o anjinho a se consultar com um especialista em ouvir. O especialista então confirmou: o anjo pequenino não conseguia ouvir.

O homem que trouxe o anjo ao mundo ficou inconformado. Andava por aí muito mais calado que o normal. A mulher que o trouxe ao mundo, continuava tratando o anjo do mesmo jeito que fazia antes. Eu, não sabia o que fazer. Só sabia que amava muito aquele anjinho.

As pessoas que trouxeram o anjo ao mundo resolveram procurar outros especialistas. Viajaram muitos quilômetros, até encontrarem um especialista que lhes deu uma esperança. Ainda muito longe dali, havia um jeito de fazer com que o pequeno anjo ouvisse.

Então, as pessoas que trouxeram o anjo ao mundo, voaram até o lugar distante onde poderiam fazê-lo ouvir. Nesse lugar distante, um especialista muito especialista em fazer ouvir, começou a trabalhar para que o meu pequeno anjo ouvisse. Esse especialista muito especialista colocou parte da audição no anjinho, que então voou de volta pra casa para se recuperar. Algum tempo depois, voou novamente para longe com a mulher que trouxe ele ao mundo para buscar a outra parte da sua audição. E com esta outra parte, o anjo começou a ouvir bem baixinho.

O anjo pequenino descobriu então que o mundo era cheio de sons! Passou a freqüentar um lugar onde uma especialista o ensina a falar e a ouvir. Desde então está aprendendo, em casa, com a especialista em falar e ouvir, em muitos lugares.

E cada vez que o anjo voa ao lugar distante onde juntou as peças da sua audição, volta pra casa ouvindo mais, ouvindo melhor. Para o pequeno anjo que dorme ao lado do meu quarto, todo som é música... E ele é feliz, porque dança com qualquer ritmo: com as propagandas na tv, com o som do carro, com o barulho da máquina de lavar...

Hoje o anjo fala muitas coisas. E se fala tanto, é porque pode ouvir o mundo. Das coisas que o anjo fala, tem uma palavra que ele inventou e que ninguém lá em casa sabe dizer o que é: bouai. De repente ele solta essa palavra, bouai! Com aqueles lindos olhos castanhos, muito arregalados e com um sorriso de quem fez uma grande descoberta o anjo me olha e diz: bouai! Então, como ainda não descobri o que isso quer dizer chamo meu anjo assim: Bouai.

No quarto do lado ao meu dorme um anjo. Um anjo sapeca, carinhoso e temperamental. Um anjo que tem os olhos arregalados como os meus, que me puxa e me convida pra brincar. Um anjo que briga comigo se não faço as vontades dele. Um anjo que diz: papai, “bãe” (mãe), “tá tenti”(tá quente), “mamam”, “xixau” (tchau), “vom aguá”(vamos guardar?), “que lin, né?” (que lindo,né?), tia, “ahul”(azul), tata, Buba, e tantas outras coisas. Um anjo que adora passear, beijar flores e correr atrás de borboletas e de todo o tipo de bichinho que se possa imaginar. Um anjo que faz cócegas, que dá deliciosas gargalhadas e distribui muitos beijinhos doces por aí. Um anjo que amo muito e que chamo de meu Bouai.